domingo, 29 de novembro de 2015

O marginal e o soldado

O bairro de São Miguel Paulista é um bairro operário localizado na zona Leste de São Paulo por onde passa os trilhos da Central do Brasil. O bairro é divido em vários aglomerados de casas aos quais se dá o nome de Vila. Depois de residir por pouco tempo no bairro da Penha, fui morar na Vila Camargo. A Vila era vizinha daVila Jacuí, Vila Xingu e Vila Cruzeiro. Em todas elas havia um campo de futebol e um time representando a vila. Tínhamos o União Camargo F.C no qual joguei como zagueiro um bom tempo.
A Central do Brasil, linha férrea que tinha início no bairro do Brás e terminava em Mogi das Cruzes, era onde pegávamos a ferrovia que nos levava ao trabalho. É chamada de linha Variante em contraponto à linha Tronco. A partir de São Miguel, a linha Variante servia aos bairros de Ermelino Matarazzo , Engenheiro Goulart, Engenheiro Trindade, Penha, Quinta Parada, Quarta Parada e Brás. Era a linha demarcatória entre a Vila Xingu e Vila Camargo. O Rio Tietê também ficava do outro lado. Mais ao longe podia se ver aviões pousando e decolando no aeroporto de Cumbica, naquela época um simples campo de pouso.
A molecada era violenta e quem residisse na Vila Camargo não se arriscava a passar pela Vila Xingu e vice versa, a não ser para participar de alguma partida de futebol previamente combinada. Também havia um armistício quando se ia nadar e pescar no tio Tietê.
Uma garota da Vila Xingu ficar de namoro com um garoto da Vila Camargo era impensável, a  menos que a paixão fosse tão forte que suportasse uma surra de deixar o sujeito meio morto. Um soldado namorar a irmã do chefe da gang era algo tão fora de cogitação que caso acontecesse era morte certa para um dos lados. Mas foi o que aconteceu comigo então soldado da Polícia Militar de São Paulo, quando namorei a irmã de João Catarino, o chefão da gang de todas as Vilas ao redor.
Nadando e pescando no mesmo rio, jogando nossas partidas de futebol ora lá, ora cá, correndo atrás de balão na época de São João, jogando pião e gude, frequentando a mesma escola, éramos todos amigosdesde a infância. Depois que surgiu o União Camargo F.C. passamos a ser companheiros de equipe. De modo que eu estava relativamente tranquilo. E depois eu já tinha me mudado para o bairro do Bom Retiro no centro São Paulo, mas sempre aparecia na Vila Camargo para rever os amigos e me encontrar com a namoradinha.
Meu avô, chamado de Véi Mestre viera da Bahia junto com toda a família e fora morar na Vila Camargo. Meus pais foram residir no bairro da Penha e como meu avô queria reunir toda a família num só lugar, um dia chegou com um caminhão de mudança e nos levou para morar na Vila. Na ocasião morava conosco um primo recém chegado da Bahia onde, depois de casar-se com um garota na cidade de Santos, fora tentar a sorte em sua terra natal. Chamava-se Filemon e sua esposa era quase adolescente apesar de já terem vários filhos. Lá na Bahia a sorte não o ajudara e tivera de voltar para São Paulo onde fora acolhido por meus pais. Na Vila cada um alugou uma casa, onde posteriormente foram adquiridas por compra.
Filemon tinha uma filha de nome Sônia que andava sempre em casa. Passamos a brincar juntos mas como já tínhamos passado da idade infantil, as brincadeiras evoluíram para jogos libidinosos. De repente fomos surpreendidos por uma paixão ardente que logo chamou a atenção de todos. Por exigência de seus pais passamos a namorar a sério e em casa. Entre voltas e reviravoltasacabamos por firmar um compromisso de casamento. E como meu salário era insuficiente para pensar em constituir família, fiz concurso para a Policia Militar de São Paulo sendo admitido.
Nem bem vestira a farda meu noivado com Sonia terminou. Continuei na corporação e fui trabalhar no Presidio Tiradentes localizado no bairro do Bom Retiro, bem perto de casa. Para me vingar de Sonia eu arranjara uma namorada que morava entre a Vila Camargo e Vila Xingu e essa namorada era irmã de João Catarino. Mas ele ainda não sabia do caso, pois andava sumido sem que ninguém soubesse do seu paradeiro.
De repente ali na muralha onde tirava plantão ouvi uma voz vinda de uma das celas rés ao chão onde ficavam os presos comuns chamando meu nome e não atinei quem poderia ser. Quando localizei o detento que me chamava fez-se a surpresa:era João Catarino. Entabulamos uma conversa e depois que me contou sua desdita, me pediu cigarros. Disse que não fumava, mas que ia providenciar para ele. Assim que tive folga no plantão (tirávamos turnos de três horas) fui a rua e comprei dois maços de cigarros e assim que retornei ao local de trabalho chamei-o e perguntei como poderia entrega-los a ele. Ele esticou uma camisa para fora das grades da cela e disse para eu jogar os maços que ele apararia naquele cesto improvisado. Joguei mas a pontaria não deu certo e os maços de cigarros foram ao chão. Ele disse que não me preocupasse que pois iria tomar providencias.
Fui cumprir o meu plantão e algum tempo depois ao retornar ao meu local de trabalho o carcereiro tinha pego os maços de cigarros a pedido de João Catarino, mas recusava-se a entregar esperando que eu confirmasse a história. Assim que me dei conta do que estava ocorrendo disse ao carcereiro que entregasse os maços de cigarros. Ele ponderou que aquilo violava as regras do presídio e que seu quisesse levar alguma coisa aos presos que fosse na portaria e pedisse autorização. Eu disse que desconhecia as regras mas que fizesse uma exceção pois da próxima vez faria as coisas conforme o protocolo. Meio constrangido pela autoridade com que eu pedia, ele entregou os cigarros para João Catarino que me agradeceu muito contente e fui completar o meu plantão.
Lá na Vila Camargo a conversa era de que assim que João Catarino saísse da cadeia iria fazer um acerto de contas comigo e não ia ser nada bom para a minha saúde. E o acerto se materializou num dia em que eu estava batendo papo com a turma num barzinho. Para surpresa de todos, ele me abraçou e depois disse para todos que quando estava na pior lá na cadeia eu fui o único cara que o socorreu. Disse mais, que soubera que eu estava namorando a irmã dele e que pudesse continuar o namoro sem problema. E arrematou com ênfase que eu era amigo dele, sempre fora, e que se alguém quisesse criar algum problema comigo iria ter de ser ver com ele.

E assim adquiri duas imunidades: uma como soldado e outra como protegido de João Catarino.