O bairro de São Miguel Paulista é um bairro operário
localizado na zona Leste de São Paulo por onde passa os trilhos da Central do
Brasil. O bairro é divido em vários aglomerados de casas aos quais se dá o nome
de Vila. Depois de residir por pouco tempo no bairro da Penha, fui morar na
Vila Camargo. A Vila era vizinha daVila Jacuí, Vila Xingu e Vila Cruzeiro. Em
todas elas havia um campo de futebol e um time representando a vila. Tínhamos o
União Camargo F.C no qual joguei como zagueiro um bom tempo.
A Central do Brasil, linha férrea que tinha início no bairro
do Brás e terminava em Mogi das Cruzes, era onde pegávamos a ferrovia que nos
levava ao trabalho. É chamada de linha Variante em contraponto à linha Tronco.
A partir de São Miguel, a linha Variante servia aos bairros de Ermelino
Matarazzo , Engenheiro Goulart, Engenheiro Trindade, Penha, Quinta Parada,
Quarta Parada e Brás. Era a linha demarcatória entre a Vila Xingu e Vila
Camargo. O Rio Tietê também ficava do outro lado. Mais ao longe podia se ver
aviões pousando e decolando no aeroporto de Cumbica, naquela época um simples
campo de pouso.
A molecada era violenta e quem residisse na Vila Camargo não
se arriscava a passar pela Vila Xingu e vice versa, a não ser para participar
de alguma partida de futebol previamente combinada. Também havia um armistício
quando se ia nadar e pescar no tio Tietê.
Uma garota da Vila Xingu ficar de namoro com um garoto da
Vila Camargo era impensável, a menos que
a paixão fosse tão forte que suportasse uma surra de deixar o sujeito meio
morto. Um soldado namorar a irmã do chefe da gang era algo tão fora de
cogitação que caso acontecesse era morte certa para um dos lados. Mas foi o que
aconteceu comigo então soldado da Polícia Militar de São Paulo, quando namorei
a irmã de João Catarino, o chefão da gang de todas as Vilas ao redor.
Nadando e pescando no mesmo rio, jogando nossas partidas de
futebol ora lá, ora cá, correndo atrás de balão na época de São João, jogando
pião e gude, frequentando a mesma escola, éramos todos amigosdesde a infância.
Depois que surgiu o União Camargo F.C. passamos a ser companheiros de equipe.
De modo que eu estava relativamente tranquilo. E depois eu já tinha me mudado
para o bairro do Bom Retiro no centro São Paulo, mas sempre aparecia na Vila
Camargo para rever os amigos e me encontrar com a namoradinha.
Meu avô, chamado de Véi Mestre viera da Bahia junto com toda
a família e fora morar na Vila Camargo. Meus pais foram residir no bairro da
Penha e como meu avô queria reunir toda a família num só lugar, um dia chegou
com um caminhão de mudança e nos levou para morar na Vila. Na ocasião morava
conosco um primo recém chegado da Bahia onde, depois de casar-se com um garota
na cidade de Santos, fora tentar a sorte em sua terra natal. Chamava-se Filemon
e sua esposa era quase adolescente apesar de já terem vários filhos. Lá na
Bahia a sorte não o ajudara e tivera de voltar para São Paulo onde fora
acolhido por meus pais. Na Vila cada um alugou uma casa, onde posteriormente
foram adquiridas por compra.
Filemon tinha uma filha de nome Sônia que andava sempre em
casa. Passamos a brincar juntos mas como já tínhamos passado da idade infantil,
as brincadeiras evoluíram para jogos libidinosos. De repente fomos
surpreendidos por uma paixão ardente que logo chamou a atenção de todos. Por
exigência de seus pais passamos a namorar a sério e em casa. Entre voltas e
reviravoltasacabamos por firmar um compromisso de casamento. E como meu salário
era insuficiente para pensar em constituir família, fiz concurso para a Policia
Militar de São Paulo sendo admitido.
Nem bem vestira a farda meu noivado com Sonia terminou.
Continuei na corporação e fui trabalhar no Presidio Tiradentes localizado no
bairro do Bom Retiro, bem perto de casa. Para me vingar de Sonia eu arranjara
uma namorada que morava entre a Vila Camargo e Vila Xingu e essa namorada era
irmã de João Catarino. Mas ele ainda não sabia do caso, pois andava sumido sem
que ninguém soubesse do seu paradeiro.
De repente ali na muralha onde tirava plantão ouvi uma voz
vinda de uma das celas rés ao chão onde ficavam os presos comuns chamando meu
nome e não atinei quem poderia ser. Quando localizei o detento que me chamava
fez-se a surpresa:era João Catarino. Entabulamos uma conversa e depois que me
contou sua desdita, me pediu cigarros. Disse que não fumava, mas que ia
providenciar para ele. Assim que tive folga no plantão (tirávamos turnos de
três horas) fui a rua e comprei dois maços de cigarros e assim que retornei ao
local de trabalho chamei-o e perguntei como poderia entrega-los a ele. Ele
esticou uma camisa para fora das grades da cela e disse para eu jogar os maços
que ele apararia naquele cesto improvisado. Joguei mas a pontaria não deu certo
e os maços de cigarros foram ao chão. Ele disse que não me preocupasse que pois
iria tomar providencias.
Fui cumprir o meu plantão e algum tempo depois ao retornar
ao meu local de trabalho o carcereiro tinha pego os maços de cigarros a pedido
de João Catarino, mas recusava-se a entregar esperando que eu confirmasse a
história. Assim que me dei conta do que estava ocorrendo disse ao carcereiro
que entregasse os maços de cigarros. Ele ponderou que
aquilo violava as regras do presídio e que seu quisesse levar alguma coisa aos
presos que fosse na portaria e pedisse autorização. Eu disse que desconhecia as
regras mas que fizesse uma exceção pois da próxima vez faria as coisas conforme
o protocolo. Meio constrangido pela autoridade com que eu pedia, ele entregou os
cigarros para João Catarino que me agradeceu muito contente e fui completar o
meu plantão.
Lá na Vila Camargo a conversa era de que assim que João
Catarino saísse da cadeia iria fazer um acerto de contas comigo e não ia ser
nada bom para a minha saúde. E o acerto se materializou num dia em que eu estava
batendo papo com a turma num barzinho. Para surpresa de todos, ele me abraçou e
depois disse para todos que quando estava na pior lá na cadeia eu fui o único
cara que o socorreu. Disse mais, que soubera que eu estava namorando a irmã
dele e que pudesse continuar o namoro sem problema. E arrematou com ênfase que
eu era amigo dele, sempre fora, e que se alguém quisesse criar algum problema
comigo iria ter de ser ver com ele.
E assim adquiri duas imunidades: uma como soldado e outra
como protegido de João Catarino.