Após resistir por oito meses e meio, o governo Dilma Rousseff começará a liberar as célebres emendas de parlamentares. Num primeiro momento, vai migrar dos cofres de Brasília para as bases eleitorais dos congressistas a quantia de R$ 1 bilhão.
Os aliados do governo acham pouco. Em almoço com os líderes, nesta terça (16), a ministra Ideli Salvatti, gestora do balcão, negociará um cronograma. Por ironia, o dique do Planalto se rompe num instante em que a PF e a Procuradoria da República esquadrinham um escândalo cevado à base de emendas.
Os desvios do Turismo nasceram de emendas plantadas no Orçamento da União pela deputada Fátima Pelaes (PMDB-AP). Não foi o primeiro caso. Não será o último. Nem toda emenda de parlamentar resulta em corrupção. Mas quase toda a corrupção de Brasília carrega as emendas no DNA.
No dizer do senador Pedro Taques (PDT-MT), ex-procurador da República, “as emendas são o pai e a mãe da corrupção.” A história dá-lhe razão. Algo como 80% dos 513 deputados e dos 81 senadores resumem os seus mandatos a duas tarefas:
A primeira é atender aos interesses dos grupos políticos e econômicos que os elegeram, A segunda, preparar a caixa da próxima reeleição. Esse par de prioridades termina por conduzir os parlamentares para o balcão de negócios com o Executivo.
Em troca de apoio congressual ao governo, exige-se a liberação das emendas e a acomodação de apadrinhados em cargos com poder para virar a chave do cofre. Os brasileiros que chegam à maioridade agora, em 2011, não sabem. Mas a conversão de emenda parlamentar em sinônimo de roubo também faz aniversário de 18 anos.
O primeiro grande escândalo, o caso dos “Anões do Orçamento”, foi pendurado nas manchetes em 1993. O país vinha do impeachment de Fernando Collor. Itamar Franco mal assumira a chefia do Executivo quando se descobriu que também o Legislativo caminhava sobre o pântano.
Deputados cobravam propinas de empreteiras e prefeituras para injetar no Orçamento da União recursos destinados a obras públicas. Criou-se uma CPI. Seis deputados tiveram os mandatos passados na lâmina. Outros quatro renunciaram. Alteraram-se as regras de elaboração do Orçamento.
Há quatro anos, em 2007, alvorecer do segundo reinado de Lula, a “Operação Navalha” demonstrou que a mudança de normas não deteve o assalto. Empurrada pelo Ministério Público e autorizada pela Justiça, a PF gravou 585 diálogos telefônicos. Conversas vadias desnudaram esquema similar ao dos anões.
A transcrição das fitas recheia um processo de 52 mil folhas. Descrevem o modo como o empreiteiro Zuleido Veras e a sua Gautama beliscavam verbas públicas. Numa ponta, compravam-se os políticos com poder para destinar verbas às obras. Noutra, subornavam-se servidores públicos responsáveis pelas liberações.
A navalha correu em quatro ministérios, seis governos de Estados nordestinos, e várias prefeituras. A vítima mais vistosa foi Silas Rondeau. Acomodado por Lula na pasta de Minas e Energia a pedido de José Sarney (PMDB-AP), Rondeau foi acusado de receber propina de R$ 100 mil.
Chefe da Casa Civil, a própria Dilma Rousseff usufruiu sem saber do patrimônio sujo de Zuleido. O governador petista da Bahia, Jaques Wagner, levou Dilma para passear numa lancha do dono da Gautama. Coisa fina: 52 pés, três suites. Depois, Wagner disse que um amigo pedira a embarcação emprestada. Alegou que desconhecia o nome do dono.
Entre os anões e a navalha, houve o caso das “Sanguessugas”. Nasceu em 2001, sob Fernando Henrique Cardoso, e explodiu em 2006, no final do primeiro reinado de Lula. Foi muito parecido com o caso atual, do Turismo. Só que envolvia a pasta da Saúde.
Na Operação Voucher, as emendas da deputada Fátima Pelaes resultaram na prisão de 36 pessoas. O inquérito envolve convênios de cursos e serviços do setor de turismo jamais realizados. Na Operação Sanguessuga, o número de presos foi maior: 47.
Na origem do malfeito, de novo, as famigeradas emendas. Os convênios da Saúde destinavam-se à compra de ambulâncias. A propina aos parlamentares era provida pela empresa Planan, que superfaturava os veículos em até 250%. Uma CPI apontou o envolvimento de 71 congressistas. Nenhum foi cassado. Mas poucos se reelegeram.
Agora, submetida a uma inusitada “greve” que paralisou a Câmara na semana passada, Dilma rende-se à lógica fisiológica que permeou as gestões dos antecessores. Vai liberar as emendas de anos anteriores, que sobrevivem na rubrica “restos a pagar.”
No Orçamento de 2012, a ser aprovado pelo Congresso até dezembro, Dilma será "intimada" a liberar mais R$ 7,7 bilhões. Cada congressista pode pendurar na peça até 25 emendas, num total de R$ 13 milhões. Muitas delas se converterão em novas roubalheiras.
Além da origem parlamentar, os escândalos têm muito em comum: produzem operações espalhafatosas da PF, dezenas de prisões e quantidade idêntica de habeas corpus. Passado o frêmito, as cadeias se esvaziam e os escaninhos do Judiciário ficam apinhados. Não há vestígio de condenação definitiva. Grassa a impunidade.