A miséria da frase não está no delírio
acientífico do homem, nem sequer na sua recusa do aborto em casos de violação
--uma posição tradicionalista, sim, que é possível entender (não por mim) e até
respeitar (idem).
A verdadeira miséria está na defesa
explícita de que há violações e violações. Se a violação é verdadeira, o corpo
da mulher é uma espécie de nave espacial que se desvia dos meteoritos,
impedindo que o espermatozoide faça a sua aterragem triunfal em solo ovular.Se, pelo contrário, a violação é ambígua, ou "amigável", como sacrificar a vida de um inocente? Sobretudo quando esse inocente é o produto de uma violação-que-não-é-bem-uma-violação?
Já escrevi nesta Folha. Repito: sou contra a liberalização do aborto,
exceto quando está em causa a saúde física e psíquica da mãe.
E imagino que uma mulher violada --a
sério ou a brincar-- não fica propriamente no seu melhor estado anímico. As
palavras de Todd Akin são, por isso, duplamente aberrantes.
Mas o aborto, e a minha semana a pensar
no assunto, não veio dos Estados Unidos. Veio de Portugal.
Na imprensa lusitana, encontro notícia
séria que merece reflexão séria: um pesquisador português, Jorge Martins
Ribeiro, escreveu um estudo universitário sobre a paternidade.
Melhor: defendendo a possibilidade de
um homem não reconhecer a paternidade de um filho nascido contra a sua vontade.
O pesquisador português baseia-se na
mais pura igualdade entre gêneros. E invoca a liberalização do aborto no país
(desde 2007) em socorro das suas teses: se, em Portugal, a mulher pode decidir
abortar até as dez semanas de gestação, independentemente da posição do homem
sobre o assunto, por que motivo o homem não pode recusar a paternidade de uma
criança?
O raciocínio de Martins Ribeiro é
exemplar --e exemplar porque parte da mesma noção de "autonomia" que
está no centro das discussões progressistas sobre o aborto.
É a mulher grávida quem decide o que
fazer com a criança. Sempre. A opinião do homem; os seus interesses; o desejo
(ou não) de ser pai --tudo isso tem importância, digamos, conjugal ou
sentimental.
Mas nada disso determina o fim do
processo. Porque a "autonomia" da mulher é sempre soberana.
Nenhum homem pode obrigar uma mulher a
abortar. No esquema geral das coisas, o homem não passa de um doador de esperma
que, depois do serviço, é atirado para as bordas do prato, assistindo a um
filme onde ele será apenas ator coadjuvante.
Como? Perfilhando (obrigatoriamente) a
criança e sustentando-a, caso a mãe decida tê-la.
O pesquisador Jorge Martins Ribeiro,
com impressionante sensibilidade paritária, inverte as premissas tradicionais
do debate e conclui: se um homem não pode obrigar a mulher a abortar, não pode
também ser obrigado pela mulher a perfilhar uma criança que ele não desejou.
E mais: nem a autoridade do Estado pode
invadir essa esfera de "autonomia" (masculina). O Estado não pode
determinar que uma mulher aborte uma criança.
Como pode desencadear uma averiguação
oficiosa de paternidade? Se o pai não quer ser pai, o filho será, literalmente,
filho da mãe.
Claro que, no meio do debate, algumas
consciências progressistas acabarão por apelar para "os superiores
interesses da criança".
Curioso: quando é para abortar, não há
"superiores interesses da criança"; quando o homem ameaça fazer as
malas, a criança passa a ter "superiores interesses".
Nada disso perturba o raciocínio do
nosso pesquisador. "Superiores interesses da criança"?
Diz ele: um sistema que já acomoda o
aborto livre até as dez semanas pode perfeitamente conviver com filhos sem
atribuição da filiação paterna.
Eis, no fundo, a beleza da
"autonomia" progressista: todos sabemos como ela começa; ninguém sabe
como ela acaba.