quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O primeiro punk do mundo se chama Little Richard

POR ANDRE BARCINSKI

A capa do disco já chama a atenção: sobre um fundo amarelo, uma foto preta e branca de um jovem negro. Ele tem os olhos fechados e a boca aberta num sorriso largo e malicioso. Parece ter sido fotografado no meio de um urro de prazer. Dá para ver seus dentes. Olhando bem, dá para ver até a língua. Em 1957, não pegava bem um astro mostrando a língua…
Na cabeça, o rapaz ostenta um topete Pompadour, batizado em tributo à famosa cortesã que incendiou os palácios franceses no século 18. E o bigodinho fino lhe confere um ar misterioso, de bruxo ou ilusionista.
Seu nome é Richard Wayne Penniman, conhecido por Little Richard. Era um bom menino. Obedecia à mãe e ia à missa. Mas quem viu Ricardinho num palco tinha certeza que ele não era desse planeta.
Seus gritos eram lancinantes (não à toa a família o apelidara, ainda criança, de “Falcão de Guerra”, pela potência animalesca de seus trinados). Tocava piano como um possuído, espancando as teclas com uma ferocidade bestial. E cantava também sob uma espécie de possessão, talvez inspirado pelos fiéis que recebiam espíritos nos cultos pentecostais que freqüentava.
Em março de 1957, chegava às lojas “Here’s Little Richard”, LP de estréia do cantor. As faixas já tinham feito sucesso em compactos: “Tutti Frutti”, “Long Tall Sally”, “Rip It Up”, “Jenny Jenny”…
O LP é o beabá do rock and roll. Marco zero. O Mobral do gênero. E acaba de ser relançado em CD, com faixas-bônus e remasterizado. “Essencial” é pouco: uma discoteca que não tem esse LP já nasce morta.
De todos os pioneiros do rock, Little Richard é meu preferido. Não só pela qualidade de suas músicas e pela intensidade de sua interpretação, mas pelo radicalismo de sua figura pública. Ninguém desafiou o sistema como ele. Little Richard foi o primeiro punk da história.
Cada vez que ouço um rockstar bilionário reclamando da fama ou um indie estatal fazendo manifesto, lembro de Little Richard: pobre, preto e gay, tocando a música do demônio no quintal da Ku Klux Klan.
Little Richard reinou numa época em que negros eram linchados e pendurados em árvores, quando tocar rock era questão de vida ou morte. Fez incontáveis shows com público dividido: brancos de um lado, negros de outro.
Tinha de ser muito macho para ser Little Richard nos anos 50. Porque Ricardinho não era um gay escondido no armário: era uma bicha louca, uma diva, um pavão misterioso que desceu de um disco voador para levar os jovens da América à perdição.
Seis meses depois de lançar esse disco, Little Richard voava para um show na Austrália quando teve uma visão: viu o avião envolto pelas chamas do inferno. Decidiu, ali, no auge da carreira, largar o rock and roll.
Foi o que fez: por alguns anos, só gravou música gospel. Abandonou as orgias que fazia na estrada – com homens, mulheres e sabe-se lá o que mais – e virou pastor.
Até que, em 1962, foi tocar na Inglaterra a convite do empresário Don Arden (pai de Sharon, futura mulher de Ozzy), com uma bandinha iniciante como atração de abertura, uns moleques chamados The Beatles.
Quando o público inglês viu Little Richard cantado gospel, começou a pedir os hits. Queriam ouvir “Tutti Frutti”, queriam ouvir “Long Tall Sally”. Richard capitulou. Tocou seus velhos sucessos e saiu do palco em êxtase. Foi o início de seu retorno ao rock and roll, a ressurreição do performer mais incendiário que o rock já viu