quarta-feira, 10 de outubro de 2012



A herança do carisma

Eliana Cardoso

Hoje me arrisco. Temo que os admiradores de Gandhi me rejeitem por lembrar palavras que gostariam de ver enterradas e esquecidas. 
Tanto no Brasil como na Índia, a imprensa é livre. O voto, limpo e honesto. Mas as campanhas eleitorais são custosas e sujas. Desvios populistas talvez expliquem como democracias vibrantes podem conviver com enormes disparidades. Calcula-se que 30% da população indiana sobrevive em pobreza abjeta, ao mesmo tempo que (atrás apenas da Rússia) a Índia ocupa o segundo lugar entre os países que têm os maiores números de bilionários no mundo. Parece que a desigualdade indiana se deve (em boa parte) ao sistema de castas. E é triste constatar que Gandhi - líder que ainda hoje inflama a imaginação e a admiração de muitos - sempre defendeu esse sistema.
Treinado como advogado britânico, depois de viver na África do Sul, onde foi importante líder comunitário, Gandhi voltou para a Índia, onde repensou o hinduísmo através do espiritualismo ocidental de sua época, enfatizando ideias como a reencarnação, o aperfeiçoamento pelo ascetismo e a fusão com o divino. Seu objetivo na vida? Alcançar o estado de perfeição em que o ciclo de renascimento chega ao fim e a alma se une a Deus. O caminho para a perfeição? A crucificação da carne. No sexo residia o perigo primeiro para a libertação final. Gandhi misturava o medo cristão do pecado com a fobia hinduísta de poluição. Aos 65 anos, uma ejaculação involuntária virou assunto para um comunicado angustiado ao público. Aos 77, testou a si mesmo dormindo nu com sua sobrinha-neta.
O extremismo de suas convicções não se limitava à cama. Enumerando suas crenças fundamentais, explicou que as máquinas representam um grande pecado. As ferrovias espalham a peste bubônica e aumentam a fome. Hospitais propagam o pecado. O camponês não precisa saber ler, pois o conhecimento das letras o tornaria descontente com sua sorte.
No seu tempo, o caminho da virtude exigia a expulsão da civilização ocidental da Índia e em 1920, usando seus dons excepcionais de energia e organização, Gandhi lançou uma campanha de não cooperação: renúncia de todos indianos às honrarias conferidas pelos britânicos e às posições no serviço público, na polícia e no exército, seguida pelo não pagamento de impostos. A campanha e o boicote à compra de bens estrangeiros eletrizaram o país. E em 1.º/2/1922 Gandhi anunciou que chegara a hora de iniciar o não pagamento de impostos. Quatro dias depois, a polícia de Chauri Chaura (no Estado de Uttar Pradesh) disparou contra manifestantes, matando três deles. A multidão contra-atacou e destruiu o local de refúgio dos policiais. Ao saber do ocorrido, Gandhi declarou um jejum de cinco dias e cancelou o movimento nacional.
Seu desgosto genuíno não parece ter determinado sua decisão, pois ele assumiria a postura contrária em 1942, ao declarar a jornalistas: "Se Deus quer destruir o mundo por meio da violência e me usar como seu instrumento, como posso impedir isso?" Parece que a razão para sua retirada súbita em 1922 estava ligada ao temor de que a revolta popular levasse a uma revolução socialista.
Do lado positivo, não nos podemos esquecer de que a imagem do líder semeou movimentos pacifistas ao redor do mundo e nele Aung San Suu Kyi encontrou inspiração para a revolta não violenta contra a ditadura de Mianmar.
Do lado negativo, precisamos lembrar a posição de Gandhi quanto ao sistema de castas. Embora condenando a ideia dos intocáveis, sempre defendeu e pregou a divisão da sociedade em quatro castas. Acreditando na transmigração e na reencarnação, afirmava que a natureza, sem nenhuma possibilidade de erro, faz as correções necessárias. Um brâmane que se comporta mal reencarna em divisão inferior: "Não há necessidade de ajustes nesta vida".
A bala de um assassino embalsamou Gandhi no papel de mártir e ainda hoje faltam à Índia políticos indianos que desafiem seus ensinamentos e condenem o sistema de castas. Converter um líder carismático em super-herói atrasa reformas benéficas ao progresso. O peronismo, na Argentina, é o exemplo mais próximo de idolatria política. Teremos sorte se o julgamento do mensalão vier a livrar a sociedade brasileira do lulismo.
* PH.D. PELO MIT,  É PROFESSORA TITULAR DA FGV-SÃO PAULO
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