BRUNO PAES MANSO / TEXTO, TIAGO QUEIROZ / FOTOS, ENVIADOS ESPECIAIS, MONTE SANTO -
O Estado de S.Paulo
O sofrimento e os dilemas vividos pela lavradora Beatriz Oliveira Lopes
durante a gravidez de seu primeiro filho, nascido em Euclides da Cunha, no
sertão baiano, são dignos das tragédias do Cinema Novo. O pai da criança era um
jovem covarde e desinteressado, que bebia demais e não quis assumir o romance
com a mãe. Bia, como é chamada, tinha 20 anos e morava com uma família de 12
irmãos. O padrasto, ao saber das novas, apontou uma arma para a cabeça dela e a
expulsou de casa.
Talvez por falta de hábito ou por convicção, aborto não era uma escolha. Na
pobre cidade de Monte Santo, Bia também não poderia contar com bons serviços
públicos como creches, escolas e postos de saúde. Ela acabou seguindo um costume
secular da região, onde o beato Antônio Conselheiro ergueu Canudos e Glauber
Rocha filmou Deus e o Diabo na Terra do Sol. Enfrentou a gestação e as dores do
parto, viu o rosto da criança antes de dar o próprio filho para outra família
criar.
"Era minha única opção. Se eu não tivesse dado, hoje o Max estaria morto. Ele
precisou ainda passar por uma cirurgia quando tinha 2 meses. Eu não poderia
pagar", conta Bia, na varanda de casa no povoado de Várzea dos Bois, na frente
do terreno onde planta milho e feijão com a mãe e os irmãos.
Benhard Max Lopes seria o primeiro filho adotivo da gaúcha Carmen Topschall,
de 49 anos, e do alemão Benhard, de 56, que tentavam montar na Bahia uma empresa
de exportação de tripas para embutidos. Os dois são personagens da outra ponta
do drama: representam o lado dos familiares de classe média, moradores das
grandes cidades, que carregam para seus lares os filhos doados nos confins da
seca. Cortam, assim, as longas filas de espera para adotar recém-nascidos.
Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, atualmente há uma criança disponível
para cada seis pretendentes. O funil vai se estreitando conforme aumentam as
exigências das famílias. Entre as crianças, menos de 1% são meninas brancas, com
menos de 1 ano, tipo preferido pelos pais. "Se desejar uma menina branca
recém-nascida, a fila de espera é longa. Se aceitar receber um menino negro, de
10 anos, que já viveu na rua, a adoção ocorre no dia seguinte", explica o
advogado Antonio Carlos Berlini, presidente da Comissão Especial dos Direitos à
Adoção da OAB-SP.
Em 2005, depois de perder uma criança e ser obrigada a tirar o útero, Carmen
se candidatou à adoção em Salvador. Depois de Max, eles adotariam outras duas
crianças e mediariam a adoção de mais uma dezena para famílias do Sul e do
Sudeste. As articulações levantaram suspeitas, que resultaram em reportagens na
televisão e jornais, motivando a abertura de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa da Bahia e no Congresso Nacional. Eles
eram suspeitos de participar de uma organização criminosa que traficava
crianças.
Percorrendo os povoados entre Monte Santo, Euclides da Cunha, Cansanção e
Quijingue, para falar com as mães que deram seus filhos, o que sobressai, acima
de tudo, são dramas familiares, arrependimentos, cicatrizes abertas - resultado
do encontro de mães de dois mundos diferentes, com expectativas diversas sobre o
futuro.
No povoado de Mandassaia, em Monte Santo, a reportagem chega à casa de Dona
Belinha, de 60 anos, para falar de sua sobrinha-neta, entregue quando tinha 2
anos para ser criada por Carmen. É o início de uma longa conversa, regada a
lágrimas. A mãe que deu os filhos é Lineide Barbosa, de 32 anos. Além de
Andréia, ela deu também um filho recém-nascido para um casal do interior de São
Paulo.
Lineide admite que pediu ajuda e queria se desfazer dos rebentos. Mas se
arrependeu e, segundo ela, foi enganada pelas mães adotivas. Andréia, que tinha
2 anos e hoje é criada por Carmen, não queria ir embora. A menina, no dia em que
foi dada, se agarrou à mãe pedindo para ficar. No hospital, levaram seu filho
recém-nascido. "Como o pai estava envolvido com drogas, me disseram que eu seria
presa, caso não desse meus filhos", conta.
Os parentes de Lineide, contudo, culpam a irresponsabilidade e o descaso da
mãe pela perda da criança. E pedem apenas para ver a menina de 2 anos mais uma
vez. "A forma como a menina foi embora, chorando, deixou a gente traumatizado.
Ela desapareceu e a gente gostaria de saber pelo menos se está bem", diz
Belinha.
Advogado de Carmen, Maurício Vasconcelos afirma que o costume de dar crianças
é antigo no Nordeste. Ele próprio, segundo conta, foi criado com uma irmã dada
pela mãe miserável. Seu tio-avô também foi dado por uma família pobre. A prática
era recorrente entre cangaceiros, ele explica, que ofereciam seus filhos para
serem criados pelas famílias abastadas do Nordeste. "Nunca houve controle de
natalidade nos sertões e dar os filhos, na maioria das vezes, é uma maneira
amorosa de garantir o futuro da criança."
A falta de estudos e de repertório para conversar com pessoas mais estudadas,
no entanto, é própria para mal-entendidos, sentimentos de injustiça e
impotência. A lavradora Maria José da Silva, de 26 anos, que deu seu filho em
2011 para uma família de São Paulo, se arrependeu. Se sentiu pressionada, diz,
porque a cesárea foi paga pela família adotiva. Achava que veria a filha
novamente e não guardou uma foto da criança. "Caí no conto deles."
Ao contrário da lavradora Eunice de Jesus, de 40 anos, que mora em uma
casinha de barro à beira da BR-116, com dois filhos. Ela deu a menina
recém-nascida a uma família adotiva, amiga de Carmen. Eunice, como as demais
mães nordestinas, nega ter recebido dinheiro. A mãe adotiva pagou o hospital, o
ultrassom e a ligação das trompas de Eunice. A menina nasceu com um problema no
olho esquerdo. "Foi o melhor para minha filha ficar. De um pecado pelo menos
Deus não vai me cobrar. Eu não tomei remédio para ter meu filho morto no meio do
mato", diz Eunice, alegando que, pelo menos, não fez aborto.
Dúvida. Outra lavradora, Pascoalina Maria de Jesus, de 48 anos, ia dar seu
filho Jonaelson, um menino de 3 anos e olhos verdes. A mãe adotiva chorou e
comprou presentes para ele quando o viu. Mas Pascoalina se arrependeu antes de a
criança ir definitivamente. Restaram as dúvidas sobre o futuro do filho, que
hoje vive à base de doações de alimentos. Sem falar nas dúvidas que a perturbam
sobre a vida que o filho teria se tivesse sido criado por uma família rica.