segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Bernard Lewis aos 95

Bernard Lewis, um dos meus heróis intelectuais, escreveu finalmente as suas memórias. Aos 95 anos. Intitulam-se "Notes on a Century: Reflections of a Middle East Historian" (notas sobre um século: reflexões de um historiador do oriente médio, W&N, 400 págs.) e raros foram os livros que me deram tanto prazer intelectual em 2012.
Li Lewis devagar, como quem tem medo que o livro acabe depressa. E quando cheguei ao fim, voltei ao início com a mesma cadência lenta.
A palavra que se aplica ao senhor é coragem: durante mais de 70 anos, Lewis foi "primus inter pares" dos historiadores do Oriente Médio. Leu tudo, escreveu sobre tudo, conheceu meio mundo, viajou por outro meio. E nunca se refugiou nas piedades politicamente corretas que contaminam o discurso sobre a matéria.
Um "orientalista", como lhe chamou pejorativamente Edward Said, interessado em construir representações falaciosas sobre o outro para melhor o dominar?
Aos 95 anos, Lewis não perde tempo com latidos menores e Said é destruído em duas linhas: o Orientalismo, ensina o prof. Lewis sem levantar a voz, não começou com a colonização do islã pela cristandade. Curiosamente, começou antes: com a colonização da cristandade pelo islã. Se Said tivesse passado sete décadas a comer pó em arquivos, saberia disso. Adeus, Said.
Eis o ponto: para Lewis, o Ocidente é um fato cultural e civilizacional, não uma plataforma de guerrilha, a favor ou contra. E é tão arrogantemente absurdo atribuir ao Ocidente a culpa pelos males do mundo como era fazer do Ocidente o centro incomparável do mundo. Será preciso chegar aos 95 anos para escrever o óbvio? Para escrever que imperialistas e anti-ocidentalistas partilham o mesmo tipo de mentalidade eurocêntrica? Suspiros.
Até porque o Ocidente, na pena de Lewis, não ganha favores especiais, sobretudo quando os vícios superam as virtudes. Um exemplo: durante a Segunda Guerra Mundial, com a falta de comida no Norte de África, os soldados americanos enviaram produtos enlatados para a região. Como presunto e carne de porco. As populações locais, indignadas com a ofensa às mais basilares regras da dieta muçulmana, recusaram violentamente a generosidade de Washington. Os americanos não entenderam porquê.
Lewis conta episódios desses com a naturalidade de quem esteve lá: como soldado inglês e testemunha da ignorância dos ocidentais sobre uma civilização antiga, rica, complexa. E, como todas as civilizações, falível por definição.
Algumas das melhores páginas das memórias de Lewis lidam com o tema arcano da escravatura no mundo muçulmano. Sim, eu sei: falar da escravatura é falar uma vez mais do Ocidente, sempre do Ocidente, apenas do Ocidente, como se esse crime fosse propriedade exclusiva de homens brancos, cristãos e europeus.
Não é, não: a escravatura no Islã começou antes dos europeus e continuou depois dos europeus. Na Arábia Saudita, a prática foi abolida em 1962. Ontem, com a café da manhã.
E, a respeito da ignomínia, conta Lewis um episódio sobre o tráfico negreiro: aconteceu em Espanha, durante uma conferência sobre o tema. Lewis conversava com Patrick Harvey, outro "orientalista" célebre e um especialista na Espanha moçárabe.
Então surgiu em cena um estudioso afro-americano que resolvera rebatizar-se com um nome muçulmano. Lewis quis saber porquê. O outro disse-lhe: "Para renunciar aos nomes daqueles que nos compraram." Patrick Harvey, que escutava a conversa, comentou apenas: "E adotar os nomes daqueles que vos vendiam?"
A pena de Lewis é assim: pedagógica, breve e fulminante. Trata de pequenas coisas (o mandamento bíblico "não matarás" é, numa tradução mais rigorosa do hebraico, "não assassinarás", uma importante diferença) e trata das grandes coisas. Como as polêmicas contemporâneas sobre as guerras do Iraque, o conflito israelense-palestino e, "last but never least", a chamada "primavera árabe".
Lewis não se furta a nenhuma delas e aproveita o embalo para esclarecer os incréus. Sim, ele apoiou Bush (pai) na primeira guerra do Iraque. Não, ele não apoiou Bush (filho) na segunda guerra do Iraque. Em 1991, depois de libertarem o Kuwait, os americanos deveriam ter terminado o serviço em Bagdad. Não o fizeram. Esse "Kuwait Interruptus", como lhe chama Lewis, foi a causa dos desastres posteriores.
Como o desastre de 2003, quando Bush (filho) voltou a marchar contra Saddam Hussein. Em 2003, o caminho deveria ter sido outro: apoiar e reconhecer um "Governo Livre do Iraque" que, a partir do norte, trataria de derrubar Saddam por dentro. E apontar as baterias diplomáticas e até militares para o Irã, a maior ameaça para a paz na região.
Há quem discorde. E a discórdia bate sempre no mesmo argumento: se o Irã chegar à bomba, existe no regime iraniano uma "racionalidade" qualquer que o faria portar-se condignamente e evitar a destruição de Israel e a inevitável retaliação americana contra o Irã.
Eu próprio assisti várias vezes a esse debate: apesar de possuir armamento químico e biológico, Teerã nunca o usou contra Israel. Nem permitiu que o Hezbollah, no Líbano, ou o Hamas, em Gaza, o fizessem.
Infelizmente, arsenal nuclear altera as regras do jogo. E é precisamente pela natureza fulminante de um ataque nuclear que as comparações passadas com a "racionalidade" do regime não colhem para Bernard Lewis. Se o Irã chegar à bomba, escreve ele, os confortos da "destruição mútua assegurada", que aguentaram os cavalos durante a Guerra Fria, não funcionarão para um regime fanatizado e messiânico.
E Israel? E sobre o intratável conflito israelense-palestino? Uma vez mais, Bernard Lewis não se refugia em argumentos gastos. Prefere contar uma história sobre a história: em 1974, Yasser Arafat preparava-se para o seu discurso triunfal na Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Mas, a caminho de Nova York, o líder da OLP fez uma paragem em Túnis, capital da Tunísia, onde o presidente Habib Bourguiba o recebeu com um jantar. Depois do repasto, o líder tunisino ter-lhe-á dito: vá a Nova York e surpreenda tudo e todos ao aceitar a resolução 181 da ONU (informação: a resolução 181 recomenda o estabelecimento de um estado judaico e de um estado árabe na Palestina; foi com base nesta resolução que o estado de Israel foi proclamado em 1948).
Aceitar a resolução, explicou Bourguiba, obrigaria a ONU, os americanos e até os israelenses a aceitar um estado palestino independente.
Arafat recusou enfaticamente a sugestão. Ou era toda a Palestina, ou não seria Palestina nenhuma. Todos conhecemos o resto dessa história sangrenta. Foi Palestina nenhuma. Até hoje.
E hoje? Lewis, aos 95 anos, com sete décadas de estudo sobre o Oriente Médio, não poderia ficar em silêncio com a "primavera árabe", sobre a qual se escreveram longos tratados de analfabetismo histórico e sentimentalismo pueril.
Como escreveu o filósofo John Gray há uns tempos, faz parte da "fé progressista" acreditar nas virtudes terapêuticas de uma qualquer revolução. Acreditar, no fundo, que o derrube de um ditador acabará sempre por trazer a aurora de um regime decente e livre.
Lewis, tal como Gray, não compra essa versão dos fatos: sem o fortalecimento de uma sociedade civil digna desse nome e sem instituições políticas capazes de garantir direitos e liberdades fundamentais para a dignidade da pessoa humana, a "primavera" será tomada de assalto por radicais islâmicos interessados em parar, com violência e obscurantismo, qualquer processo de modernização do Islã.
Porque o Islã, explica Lewis, está ainda nos alvores de um caminho --social, cultural, econômico e religioso-- que a Europa já trilhou há mais de cinco séculos. O que significa que a religião tem uma importância pública e social --como fonte de autoridade, lealdade e definição de identidades-- como já não se vê na Europa depois das sucessivas vagas de modernidade que aportaram ao Velho Continente: do Renascimento à Reforma, do Iluminismo à Revolução Industrial.
E o Islã não beneficia de nenhum preceito religioso que, à semelhança do que sucedeu na Cristandade, seja capaz de dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
O caminho será longo. Se a "primavera árabe" falhar, e ela tem tudo para falhar, será um caminho interrompido.
Agora que os Estados Unidos reelegeram Barack Obama, alguém deveria enviar para Washington uma cópia das magistrais memórias de Bernard Lewis. Para que o presidente reeleito aprenda que, às vezes, o pior ainda pode estar por vir.
João Pereira Coutinho
João Pereira Coutinho, escritor português, é doutor em Ciência Política. É colunista do "Correio da Manhã", o maior diário português. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve às terças na versão impressa