Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2012
Diário do Comércio, 17 de outubro de 2012
Agora
que os mensaleiros estão no fundo do poço, não cessam de erguer-se
vozes indignadas de petistas, comunistas e socialistas fiéis que os
condenam como oportunistas e traidores. Mas por que deveria algum líder
ou militante ser atirado à execração pública pela simples razão de ter
cumprido à risca a sua obrigação de revolucionário? Não é certo que a
estratégia marxista-leninista ordena e determina não só atacar o Estado
burguês desde fora, mas corrompê-lo desde dentro sempre que possível
para em seguida acusá-lo de depravado e ladrão e substituí-lo pelo
Partido-Estado? Não é notório que, na concepção mais ampla e sutil de
Antonio Gramsci, inspirador e guia da nossa esquerda há meio século, a
corrupção do Estado não basta, sendo preciso estendê-la a toda a
sociedade, quebrantar e embaralhar todos os critérios morais e jurídicos
para que, na confusão geral, só reste como último símbolo de autoridade
a vontade de ferro da vanguarda partidária? Não é óbvio e patente que,
se na perspectiva gramsciana o Partido é “o novo Príncipe”, ele
tem a obrigação estrita de seguir os ensinamentos de Maquiavel, usando
da mentira, da trapaça, da extorsão, do roubo e do homicídio na medida
necessária para concentrar em si todo o poder, derrubando pelo caminho
leis, instituições e valores?
Na perspectiva marxista, nenhum dos
artífices do Mensalão fez nada de errado, exceto o crime hediondo de
deixar-se descobrir no final, pondo em risco o que há de mais intocável e
sagrado: a boa imagem do Partido e da esquerda em geral.
Para não perceber uma coisa tão
evidente, é preciso desviar os olhos para os aspectos mais periféricos e
folclóricos do episódio, apagando da memória a essência, a natureza
mesma do crime cometido. Que foi, afinal, o Mensalão? Uma gigantesca
operação de compra de consciências. E para quê as consciências foram
compradas? Para enriquecer os srs. José Dirceu, Genoíno, Valério e mais
alguns outros? De maneira alguma. Foram compradas para neutralizar o
Legislativo e concentrar todo o poder nas mãos do Executivo, portanto do
Partido dominante. Que pode haver de mais leal, de mais coerente com a
tradição marxista?
Toda a geração que, cinqüentona ou
sessentona, chegou ao poder nas últimas décadas foi educada num sistema
moral onde as culpas pessoais são insubstantivas em si mesmas,
dependendo tão-somente da cor política e transmutando-se em virtudes tão
logo tragam vantagem ao “lado certo” do espectro ideológico. Bem ao
contrário: segundo o que essa gente aprendeu desde os tempos da
universidade, qualquer concessão à “moral burguesa”, se não é útil como
jogo-de-cena provisório, é delito maior que a consciência revolucionária
não pode tolerar. Nessa ótica, que pode haver de mau ou condenável em
juntar dinheiro por meios ilícitos para comprar consciências burguesas e
forçá-las a trabalhar, volens nolens, para o Partido Príncipe?
Uma vez que se abandonou a via da revolução armada – não por reverência
ante a vida humana, mas por mera oportunidade estratégica --, que outro
meio existe de instaurar a “autoridade onipresente e invisível” senão a
corrupção sistemática dos adversários e concorrentes?
Não faltará quem, movido pela
incapacidade geral brasileira de conceber que um político, ao meter-se
em tal embrulho, o faça movido por ambições muito mais vastas que o mero
desejo de dinheiro, levante aqui a objeção: Mas os mensaleiros não
ficaram ricos?
Ficaram, é claro, mas desejariam
vocês que eles depositassem todo o dinheiro sujo na conta do Partido,
atraindo suspeitas sobre a própria organização em vez de protegê-la sob
suas contas pessoais como bons agentes e testas-de-ferro? Ou desejariam
que, de posse de imensas quantias, continuassem levando existências
modestas, dando a entender que eram apenas paus-mandados em vez de
expor-se como vigaristas autônomos e bandidos comuns sem cor política,
que é como agora são vistos por uma opinião pública supremamente
inculta, sonsa e – novamente -- ludibriada?
Pois induzir o povo a vê-los
exatamente assim, salvaguardando a boa reputação do esquema de poder
partidário que os criou e ao qual serviram, é precisamente o objetivo de
toda essa corja de moralistas improvisados que agora os cobre de
impropérios em nome da pureza e idoneidade da esquerda.
Os
mensaleiros não são, é claro, bodes expiatórios inocentes. São culpados
parciais incumbidos de pagar sozinhos pela culpa geral de uma
organização que há trinta anos vem usando do discurso moral, com notável
eficiência, como disfarce e instrumento do crime.
Os que agora tentam se limpar neles
são ainda piores que eles. Pois o que fazem é tentar levar o povo a
esquecer que os mensaleiros de hoje são os moralistas de ontem, os
mesmos que, nas CPIs dos anos 90, brilharam como paladinos da lei e da
ordem, enquanto já iam preparando, sob esse manto cor-de-rosa, o esquema
de poder monopolístico do qual o Mensalão viria ser nada mais que
instrumento. E para que fariam isso, se não fosse para aplanar o terreno
para novos e maiores crimes?
Se os indignados porta-vozes do
antimensalismo esquerdista tivessem um pingo de sinceridade, teriam se
insurgido, anos atrás, contra o acobertamento petista das Farc,
organização terrorista e assassina, perto de cujos crimes o Mensalão se
reduz às proporções de um roubo de picolés num carrinho da Kibon. Como
não o fizeram, a narcoguerrilha colombiana cresceu até tornar-se, sob a
proteção do Foro de São Paulo, a maior distribuidora de drogas no mundo,
prestes a receber do sr. Juan Manuel Santos, sabe-se lá em troca de
quê, as chaves do poder político.