O centro da cidade era um amontoado caótico de casas. Havia alguns prédios de apartamentos por isso podemos chamá-Io de centro urbano que é uma expressão mais simpática. A passagem de veículos por suas ruas nem poderíamos classificar de trânsito vez que seus motoristas não respeitavam mão e contramão, estacionando seus carros onde bem entendessem. Talvez isso se devesse a farta distribuição de carteiras de habilitação promovida pelos políticos em época de eleição. O candidato a motorista só não adquiria sua carteira se fosse totalmente cego, faltasse os dois braços ou as duas pernas. Enxergou um pouquinho, deu para pegar no volante e pisar em algum pedal já estava aprovado sem precisar entrar no veículo.
As praças da cidade estavam tomadas pelo mato, capim e pés de algaroba fazendo a felicidade dos muares que ali pastavam tranqüilos. Em algumas cresciam viçosos pés de milho e feijão. De vez em quando o prefeito mandava capinar o mato, podar as algarobas e colher a pequena safra. Uma ou outra tinha piso de pedrinhas, porém as crateras já tomavam conta. Algum espertinho roubava as pedrinhas para decorar sabe-se lá o quê. Bancos naquelas praças para se sentar era um luxo.
Se havia quebra-molas? Claro, e dos
grandes fazendo a alegria dos donos de oficinas mecânicas. Afinal, quebra-molas
é uma instituição legitimamente baiana e não há município que não os tenha. Mas
tudo isso não era nada diante de um grave problema que afligia a toda
população: os esgotos corriam a céu aberto. O problema era insolúvel porque o
subsolo era constituído de pedras maciças e abrir um buraco ali só com
dinamite. Esse método porém não podia ser usado porque abalaria as estruturas
frágeis das residências do lugar. De modo que corria pelas ruas, aquela água
negra e fedorenta trazendo um bando de urubus a reboque que tinham elegido a
cidade como sua estação de pouso e descanso pois, como se sabe, o ar quente e
mal cheiroso faz bem à saúde dessas agourentas aves.
Um dia correu o boato de que o governador
iria visitar a cidade. E este para variar era Antônio Carlos Magalhães em mais
um de seus mandatos. O fato é que o prefeito conseguira a promessa de ACM de
visitar a cidade para inaugurar algumas obras. E veio exultante dar as
alvíssaras. Alguns fogos espoucaram e os vereadores foram consultar as “bases”
para saber de suas reivindicações. Fez-se uma reunião onde se debateu as
providências a serem tomadas para a chegada de tão ilustre visita. Na dita
reunião chegou-se rapidamente a um acordo sobre quais ruas seriam interditadas
para a passagem da comitiva. Também se chegou a um consenso sobre o local
onde seria servido o almoço e quais iguarias o comporiam. Quem iria
discursar no palanque e em qual ordem também foi determinado. Chegou-se ao
requinte de nomear dois homens fortes para, no momento oportuno, carregar
“espontaneamente” o governador nos ombros num gesto tão característico de nossa
gente.
Havia um
“porém”, como diz o vulgo, e esse “porém” era aquele esgoto à vista e a
urubuzada que denegria a imagem da cidade. Convenhamos que aquele não era um
comitê de recepção dos mais recomendáveis para qualquer político quanto mais
para ACM. Todo mundo sabe que com o governador não se brinca. Vacilou com ele,
a madeira deita. Era preciso limpar as ruas para mostrar a sua excelência como
a verba liberada para o saneamento
da cidade fora bem aplicada. Alguns vereadores da estreita confiança do
prefeito embolsaram parte daquela verba e estavam num beco sem saída.
De
modo que ali na casa do chefe do executivo municipal estavam reunidos aqueles
vereadores de reputação ilibada, às voltas com um problema de graves proporções
e que não apresentava uma solução à vista. O líder da Câmara, vereador
conhecido por sua estreita ligação com o prefeito, sugeriu incisivo:
- Basta lavar as ruas e matar todos os
urubus.
Essa solução porém, foi rapidamente
descartada pois, como bem lembrou um supersticioso vereador, matar urubu dá
azar e na cidade não havia caminhões que lavassem as ruas.
Outro
edil sugeriu que se posicionasse o povo ao longo do trajeto por onde passaria a
comitiva escondendo, deste modo, a lama preta dos excelsos olhos do governador.
Quanto aos urubus, bastava atirar pedras neles colocando-os em fuga. Estudaram
o assunto e alguém lembrou que o povo é ingrato não reconhecendo as relevantes
obras feitas em prol da comunidade e poderia não aceitar tão nobre tarefa.
Quanto aos urubus todo mundo sabe que esses bichos são treteiros e teimosos.
Você atira uma pedra neles, eles voam até um local mais próximo e ficam de lá
“urubuservando”. É você se distrair e lá estão eles de volta.
Os vereadores já estavam de cabeça quente
prevendo a tragédia quando o prefeito, estrategicamente mandou servir café com
bolinhos para aqueles baluartes da ética e da moralidade. Refeita as forças
voltaram ao problema. Um vereador que até aquele momento não dissera uma
palavra, sugeriu que se mudasse
itinerário da comitiva passando somente pelas ruas que estivessem
limpas. Era uma boa idéia que só um bom café reforçado podia gerar. Estudaram o
mapa da cidade e viram como era difícil encontrar alguma rua que não tivesse
esgotos fazendo com que o trajeto a ser percorrido abarcasse quase todo o
perímetro urbano passando por ruas estreitas e sem calçamento. Estavam todos
dispostos a se dar por vencidos quando o prefeito apresentou uma idéia digna de
um homem que foi eleito para comandar os destinos do município. Esfregando as
mãos de contentamento, disse a seus correligionários:
-
Companheiros, vocês se lembram da análise da água consumida na cidade que foi
feita em Salvador constatando
contaminação por coliformes fecais?
Se eles se lembravam! O documento
fora engavetado para não alarmar a população e também porque não havia solução
à vista.
- E daí chefe? Inquiriu o
presidente da Câmara sem atinar aonde o “chefe” queria chegar.
-
E daí meus amigos, é que vamos suspender o fornecimento de água na cidade
dizendo que há fortes suspeitas de que esteja contaminada, inclusive com o
vírus da cólera e que todos aguardem até vir o resultado da análise.
-
E as carroças de água e os caminhões-pipa que abastecem a população? Lembrou
outro vereador quase, adivinhando onde o prefeito queria chegar.
-
Mandamos confiscar tudo para exame. O povo vai ficar até agradecido pois vivem
dizendo que eles são focos de contaminação. Afinal não há um caminhão-pipa que
ninguém sabe o que transportava até servir água?
E continuou o prefeito:
- Com o corte de água as pessoas só
vão usar o líquido para as suas necessidades essenciais. Desse modo, em pouco
tempo as ruas estarão sequinhas e basta depois dar uma boa varrida para ficar
tudo limpo.
- E os urubus? Perguntaram todos.
- Ora amigos, sem a catinga para
alegrar as suas narinas eles vão se mandar para outras plagas.
E
assim, a egrégia Câmara de Vereadores, reunida em sessão extraordinária
sancionou um decreto emanado do executivo municipal que determinava a suspensão
de todo o abastecimento de água na cidade. Era a primeira vez que uma cidade do
nordeste sofria uma seca por decreto.
Foi
uma linda festa! O trajeto percorrido pelo governador estava que era uma
beleza! Tudo limpo e asseado atestando a boa administração executada pelo
prefeito provando que ele aplicara bem a verba de saneamento. Os discursos
foram entusiásticos e ACM foi carregado espontaneamente nos braços do povo. O
almoço agradou a todos os paladares e o governador sancionou todas as
reivindicações. É verdade que alguns engraçadinhos apareceram com uma faixa
onde se lia: “Queremos água”, mas a polícia dispersou-os antes que ACM visse o
que estava escrito.
No
outro dia, sem nenhum aviso prévio, a água voltou a jorrar das torneiras, as
carroças e caminhões-pipa retomaram as suas atividades normais, os esgotos
invadiram de novo as ruas e os urubus voltaram parar refazer suas forças
combalidas por muitas horas de vôo.
Quanto
ao resultado da análise da água, esse jamais foi divulgado.