quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Sepulturas sem sossego


exumacao-jango

Em São Borja, uma brigada internacional de especialistas, semelhante à que agiu em Caracas, vigiou o rito que começa a substituir o embalsamamento de divindades civis como Lenin, exposto à visitação pública em Moscou desde 1924
 
AUGUSTO NUNES
 
Três anos e quatro meses depois de aberta por Hugo Chávez com a exumação de Simón Bolívar, a temporada de caça ao veneno chegou à etapa brasileira no interior gaúcho. Em sossego desde dezembro de 1976 no cemitério de São Borja, cidade onde nasceu e até agora jazia em paz, o presidente João Goulart foi transformado na bola da vez pelos praticantes da política dos mortos. Eles vivem à procura de pretextos para algum acerto de contas com o passado que permita reescrever a história com a mão esquerda. Os organizadores do resgate da última quarta-feira, por exemplo, sonham provar que Jango sucumbiu não ao infarto mais que previsível, mas a uma florentina troca de remédios tramada por envenenadores a serviço das ditaduras que infestavam o subcontinente. Aconselhados pelo que lhes resta de juízo, os celebrantes do rito fúnebre no Rio Grande do Sul substituíram por um velório pelo avesso a carnavalesca recepção armada por Hugo  Chávez, em julho de 2010, para homenagear El Libertador à saída do seu mausoléu.

Em julho de 2010, a reencarnação de Bolívar resolveu desenterrar o original para descobrir que o herói da independência morreu envenenado com arsênico pelos pérfidos colonialistas. Transmitido  ao vivo pela TV e narrado pelo ministro do Interior, o espetáculo da morbidez chegou ao clímax quando Chávez confiscou o microfone para advertir os espectadores: ”Tirem as crianças da sala, que a cena que vamos exibir será forte”. Dado o alerta, a câmera exibiu em close a ossada gloriosa. Na madrugada, ainda grávido de emoção, o chefe da revolução bolivariana decidiu ressuscitar o exumado pelo Twitter: “Levanta-te, Simón, porque não é hora de morrer!”, ordenou. Bolívar só foi devolvido ao mausoléu depois de sete dias sem sair da horizontal — e sem saber do resultado dos exames: para decepção dos  profanadores de túmulos com bons índices de popularidade, ele morreu de tuberculose.
Nesta quarta-feira, a exumação de Goulart foi feita sem câmeras de TV nem jornalistas por perto. Para frustração dos turistas que lotaram a mirrada rede hoteleira de São Borja, só tiveram acesso ao cemitério — além da brigada internacional de especialistas formada por brasileiros, uruguaios, argentinos e cubanos — alguns parentes, uns poucos amigos de fé e três celebridades federais: o governador Tarso Genro, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e a inevitável Maria do Rosário. Secretária dos Direitos  Humanos (com status de ministra), a combatente do PT gaúcho encarregou-se da retórica hiperbólica. ”Exumar Jango é exumar a ditadura”, informou. Como se vinte anos coubessem num único personagem ou num caixão. Como se merecesse ser levada a sério uma frase que pode acabar inocentando o regime militar de todos os homicídios que lhe são atribuídos. Basta ficar comprovado que Jango foi abatido pelo coração arruinado por falta de cuidados e excessos de sobra.
Essa hipótese é mais que provável, previnem os dois casos registrados em território chileno entre a exumação de Bolívar e a de Jango. Em maio de 2011, Salvador Allende foi retirado do túmulo para eliminar a suspeita que afligia os derrotados pelo golpe militar chefiado 38 anos antes por Augusto Pinochet: o presidente cometera suicídio ou fora executado depois da invasão do palácio em que estava entrincheirado? Foi suicídio, reiteraram os exames. Em abril de 2013, chegou a vez do poeta Pablo Neruda. Neste 8 de novembro, uma junta de onze médicos chilenos e estrangeiros concluiu que Neruda morreu há quarenta anos em decorrência do câncer na próstata que precipitara a internação num hospital. Mas não vai descansar por muito tempo. Inconformado com o resultado adverso, o juiz Mário Carroza promete exigir uma segunda bateria de testes. O desvendamento de um assassinato político justifica qualquer gastança, ensinou Maria do Rosário aos jornalistas interessados nas despesas exigidas pela exumação de João Goulart, incluídos exames e traslados. “Custa menos do que uma ditadura”, resumiu.
E exumar é bem mais barato que embalsamar, poderia ter acrescentado a ministra. Embalsamar é verbo que não combina com os  humores pendulares do subcontinente, como atestam a saga de Evita Perón e o fiasco produzido por Nicolás Maduro quando tentou transformar Hugo Chávez na versão cucaracha de Lenin (veja o quadro ao lado). Bem menos complicada é a exumação. Não tem contraindicações, nem provoca efeitos colaterais. Se der em nada, o exumado volta à tumba sem perdas nem danos. Se funcionar, qualquer despesa parece irrisória. Para quem confunde urna funerária com urna eleitoral, morte morrida é de pouca serventia. Muito mais proveitosa é morte matada. Essa não tem preço.