Eu tive um grande amigo.
Não, não é desses amigos de cachaça, nem companheiro de trabalho e nem desse
amigo recente que a gente vê de vez em quando. Chamava-se Gerson e era meu
primo. Desde pequenos que nós nos conhecíamos. A princípio, uma amizade comum,
de fazer traquinagens na Vila Camargo em São Miguel Paulista que era o lugar
onde morávamos em São Paulo. Depois
percebi que aquele garoto tinha uma curiosidade obsessiva, tudo querendo saber
e dando opinião. Ele sempre foi opinativo, jamais aceitando passivamente os
argumentos que lhe apresentavam. E começamos nossa maratona de descobertas. A
princípio tornei-me seu mestre, depois fui dispensado desta função e acabamos
sendo mestre e discípulo simultaneamente um do outro. Isso não foi o resultado
de algum acordo, como a princípio pode-se pensar. Seria um modo de se
relacionar bastante artificial, como fazem as pessoas que estão adequadas em
seus papéis sociais. Detestávamos qualquer tipo de artificialidade, por isso
éramos considerados rebeldes e combatíamos na medida do possível o que não nos
servia na sociedade. Queríamos viver nossas vidas pouco nos importando com os
possíveis comentários. Aliás, os comentários negativos criavam em nós mais
energia e vontade de transgredir.
Nessa época terrível de Paulos
Coelhos, Laires Ribeiros, Lauros Trevisans, de astrólogos, tarólogos,
espiritualistas e toda sorte de charlatães, não é considerado bom para a saúde
ter ódio. “Não odeiem”, dizem eles, “amem o seu próximo, sejam bons vizinhos”,
“tenham pensamento positivo”. Dou uma banana para todos que estão legislando em
causa própria pois ficam apavorados com a possibilidade de serem desmascarados.
Nada como cultivar um bom ódio contra a mediocridade, contra os farsantes, contra
o comportamento politicamente correto, contra o bom mocismo. Nós, eu e o
Gerseno Véio tínhamos um ódio santo contra todo tipo de empulhação. Na verdade
o Gerseno me salvou pois eu tinha uma tendência irreprimível de ser um bom moço
e acabaria fatalmente casando cedo, criando uma penca de filhos e mergulhando
inevitavelmente no rancor e frustração provocados por uma vida sem alegria.
Lembro-me de minha primeira
paixão! Como foi avassaladora, maravilhosa, frustante, terminal como só uma
paixão adolescente pode ser. E o Gerseno participou de tudo pois foi testemunha
de meus sofrimentos e alegrias, sendo meu aliado nos propósitos que eu
pretendia atingir com o objeto de minha paixão. A tempestade passou como tudo
passa nesta vida. Restou uma saudade branda que alegra os meus dias. Depois
veio outras e mais outras como é de praxe em nossa natureza . Mais tarde eu vim
para a Bahia e o Gerseno ficou lá. E eu o visitava e ele me visitava, para que
não perdéssemos o contato. Ele pintava e esculpia e eu escrevia e ambos
respeitávamos a arte um do outro. Brigamos muito: um com o outro e contra tudo
e contra todos e digo com toda convicção, que foi exatamente esse espírito
guerreiro que fez nossa arte crescer. Nada como uma boa batalha para fazer o
ser humano adquirir estatura moral e artística.
Falando assim, até parece essas
elegias piegas que as pessoas fazem para seus amigos mortos. Odeio elegias mas
não posso de deixar de falar do meu irmão Gerseno Véio. É bom que se diga que
ele me chamava de Laureno Véio. E por que isso? Por causa de John Lennon de
quem éramos fãs ardorosos, daí o apelido. Mas ele gostava também de Mick
Jagger, de Frank Zappa de Bob Dylan e outros astros do rock rejeitados pelos
mauricinhos. Sua aparência desleixada e transgressora causava repulsa nas
pessoas que eram ligadas a mim. Nem por isso deixei de ser solidário com ele.
Quem não gostasse que tomasse outro rumo, incluindo aí parentes e esposas. Ele
não vivia por aí caindo pelas tabelas. Era bastante lúcido e as drogas não o
derrotaram. Nossos preconceitos eram poucos, considerávamos que o importante
era agir, sair do marasmo, da pasmaceira,
rejeitar “ambientes sadios” e pessoas de “boa reputação”. Podemos até
frequentar ambientes sadios e sermos amigos de pessoas de boa reputação.
Podemos até ser cidadãos exemplares, cumprindo nossos deveres. Mas o espírito
tem de ser livre, a imaginação tem de voar buscando horizontes sem limites. Nesse sentido ele
simbolizava o irracional, a entrega sem reservas, a imaginação voando livre e
criadora, enquanto eu era o racional, a
mente analítica que mantinha a imaginação sob estrito controle. Mas ambos
tínhamos o mesmo sonho: criar uma arte que fosse livre, pintar e escrever sem o
controle da mente, deixando o pincel e a caneta correrem soltos sobre a tela e
o papel. Por isso éramos loucos por Salvador Dali, o pintor surrealista e
Lautreamont e seu livro “Os cantos de Maldoror”.
O universo de nossos interesses
era amplo: Carlos Castanheda, Jackson Pollok, Clarice Lispector, cogumelos
alucinógenos, a magia das pedras, numerologia, astrologia, tarô, I Ching,
sonhos, James Dean, blues, rap, heavy metal, Black Sabatt, Led Zeppelin, Velvet
Underground, cartuns, Robert Crumb,
sexo, palavras, imagens, cordel, natureza selvagem, Lampião, Fernando Pessoa,
Jimmi Hendrix, cangaço, cinema, Jethro Tull, José Celso Martinez Correia,
Stepenwolf, Luiz Gonzaga, Dylan Thomas, música clássica... É compreensível
porque as esposas tenham ciúmes das amizades de seus maridos. No casamento há direitos, deveres e obrigações que trazem
uma enorme carga de ressentimentos. Há linhas demarcadas que não podem ser
transpostas. O relacionamento então torna-se uma farsa com os cuidados que se
toma para não se cometer erros que possam
abalar a união conjugal. A(o) amante, é um recurso para se tentar
escapar desta camisa-de-força. E o amigo é a permissão para sermos o que
realmente somos. Mas, assim como no casamento, para que a amizade mantenha-se
firme e forte há necessidade de conflitos de vez em quando. Afinal, são duas
pessoas com personalidade própria e cada qual tem sua
opinião. É natural, portanto, que haja divergências. A vantagem da amizade é
que não se vive junto. Viver junto é muito desgastante como sabem todos os
casais.
Não sinto muita falta do
Gerseno. Não sinto porque ele está incorporado em mim. Agora pouco assisti o
filme dos Rolling Stones, Gimme Shelter, onde eles se apresentaram no Madison
Square Garden e em Altamont nos Estados Unidos em 1969. O concerto em Altamont
foi o fim do sonho de Woodstock, vez que os Hell Angels assassinaram um negro
em frente ao palco, além de muito espancamento e outras mortes. O Gerseno iria
gostar pois era fã dos Stones. Lembro-me que enquanto eu curtia Let it be
dos Beatles ele curtia Let it Bled dos Stones. Jamais curti Their
Satanic Majestic Request e The Beegars Banquet, os discos malditos
dos Stones. Deles gostei de Get yer ya-ya’s out, a apresentação ao vivo
do Madison Square Garden e Altamont. O Gerseno iria adorar esse filme. Talvez
eu o tenha comprado por sugestão dele. Como disse, ele agora está incorporado
em mim. O que me torna muito mais completo.
O Gerseno participou de minha
existência durante 40 anos. Ele sabia tudo sobre mim. Mais do que meus pais,
mais do que as mulheres com quem convivi, mais do que outros amigos, mais do
que qualquer outra pessoa. Ele era o guardião dos meus segredos, assim como eu
era dos dele. Não digo que tudo foi transparente. Ninguém sabe sobre a
totalidade da vida de outra pessoa. Afinal, é necessário haver um certo grau de
privacidade, de resguardo, até para o bem de nossa sanidade mental. Há
necessidade de haver em nós, um recanto de exclusiva propriedade nossa. Algo
que só nós sabemos e conhecemos e ninguém mais. É exatamente essa
particularidade que nos dá a sensação de liberdade, de independência. Mas eu e
o Gerseno tínhamos bem poucos segredos um para o outro. Agora, com sua morte,
como fico? Estarei só, irremediavelmente só e sem ninguém a quem dizer as
coisas? Ficarei perdido, sem a possibilidade de aferir meus conhecimentos, de
compartilhar minhas novas descobertas? O amor é uma palavra que perdeu o
sentido ou estou sabendo do seu exato significado? Guardo em mim algum segredo
que gostaria de dizer ao Gerseno ou não tenho mais nada a dizer? Isso tudo
saberei daqui para a frente.
Desde já, contudo, sinto que
possuo muito mais força, muito mais criatividade. Os horizontes se ampliam e
não há ninguém mais para contestar o que vivi ou deixei de viver. Meu passado
me pertence, o que me leva a concluir que minha vida me pertence. Sou o único
guardião dos meus segredos o que me dá amplas possibilidades de criar em cima
disso.
Quando
Greta Garbo abandonou a carreira artística, ela disse: “I want to be alone”
(quero ficar só). Como J.D. Salinger, como Thomas Pinchon, eu também want to be alone. Contudo, a imbecilidade
humana não me atormenta pois posso tolerar uma ampla variedade de
comportamentos e personalidades. O importante, ou o segredo, é se resguardar
mantendo nossa alma longe, muito longe do vasto oceano da barbárie que está
tomando conta de tudo.
Lauro
Adolfo