João Pereira Coutinho
Vive como
um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a tua arte. Eis o
espírito de uma conhecida frase de Flaubert. Haverá conselho mais sábio para
qualquer artista ou candidato a? Duvido. Ele transporta duas grandes verdades
--e uma grande inferência.
Comecemos
pelas verdades. Não existe arte, grande arte, sem ordem, grande ordem. Não falo
apenas de um mínimo de ordem pessoal, embora isso ajude: escreve-se melhor
quando não existe a angústia suplementar de não haver dinheiro para pagar o
uísque das crianças.
Mas
também se escreve melhor quando não existe a angústia suplementar de podermos
ser perseguidos, presos ou mortos. Exceções?
Sempre
houve: casos pungentes de criatividade humana no meio do lodaçal. Mas quem
deseja ser essa exceção?
Como
dizia o estimável Saul Bellow, eu não conheço o Tolstói dos zulus. Ou o Proust
do Sudão. Ofensivo, dizem as brigadas politicamente corretas. Pena que não
apresentem esse Tolstói ou esse Proust. Sem provas, ofensiva é a inteligência
das brigadas.
Os
artistas "boêmios", ou pretensamente "boêmios", só marcham
contra a civilização burguesa precisamente porque existe uma. Sem uma
civilização burguesa, o lugar deles era a irrelevância, o anonimato ou coisa
pior.
E não
existe imagem mais patética do que ver o ódio do artista rebelde contra o exato
mundo burguês (ou capitalista, tanto faz) que sustenta e promove a sua
rebeldia. Flaubert, que nunca morreu de amores por esse mundo, teve pelo menos
a honestidade de expressar a sua ambivalência perante ele.
Mas a
frase de Flaubert transporta uma segunda verdade: é a tua arte que conta, não a
tua vida. É a arte que deve ser julgada, não a tua relação problemática com o
sabão ou com as maneiras.
Anos
atrás, lembro-me de um velho professor de estética que me contava, maravilhado,
que a primeira vez que conhecera o grande escritor e artista português Almada
Negreiros, o autor estava sentado no sofá da sala, assistindo ao noticiário,
como qualquer "pater familias" depois de mais um dia de labuta.
Almada, o
modernista Almada, o futurista Almada, que pintou Fernando Pessoa e deixou
"Nome de Guerra", um dos mais primorosos textos do século 20 lusitano
--de pantufas em casa! Quem nunca escreveu de pantufas, ou de robe, ou até de
pijama, não pode saber o que existe de conforto espiritual no exercício.
Recomendo, recomendo.
E
recomendo uma inferência suplementar a partir de Flaubert: se não fores um
gênio, não te esforces tanto por parecer um. Os gênios não se esforçam. Eles
são. A essência precede a aparência, não o contrário. Quando se começa pelo
fim, normalmente é porque não há grande coisa no princípio.
Conheço
casos. Gente que acredita que a ausência de um livro recomendável, de um quadro
recomendável ou de um filme recomendável pode ser compensada com a pose certa
de escritor, pintor ou cineasta.
Não pode,
meu bem. Quando não existe obra digna desse nome, não é boa ideia uma pessoa
apaixonar-se pelo próprio nome. Até porque há paixões que podem não ser
correspondidas.
É por
isso que o destino usual do artista falsamente inusual é um poço de
ressentimentos. Ou, melhor dizendo, a exigência infantil de que o mundo em
volta reconheça o tamanho do seu ego. Risível. Não é o ego que tem de ser
grande. É a obra. Sempre a obra. Só a obra.
Vive como
um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a tua arte. Que o
mesmo é dizer: abandona a tua pose no latão de lixo. Não simules conhecimento
que não tens. Aprende com quem sabe. Não queiras ser "transgressivo"
na tua vida. Aprende primeiro a usar os talheres. E quando quiseres ser
"transgressivo", vai lavar os pratos (e os talheres). Isso passa.
Não
esperes que o mundo se curve à tua passagem. És tu que te deves curvar à
passagem do mundo. E antes de abrires a boca para te rires do que não entendes
nem és capaz de fazer --"Woody Allen está a ficar repetitivo,
não?"--, cala a boca, ri de ti próprio e pergunta quando foi a última vez
que fizeste um filme razoavelmente decente. Ou um romance. Ou um quadro.
E se
achares que já fizeste esse filme, ou esse romance, ou esse quadro, então
esquece. Podes ir buscar a tua pose no fundo do latão.