PUBLICADO NO GLOBO DESTA SEXTA-FEIRA
NELSON MOTTA
Sempre que perguntada, a maioria da população brasileira tem se
manifestado contra a liberação do aborto, da maconha e do casamento gay,
e a favor da pena de morte e da maioridade penal aos 16 anos. Sem
dúvida são posições conservadoras, ou “de direita”, como diz o Zé
Dirceu, e, no entanto, são esses que elegem os governos e as maiorias
parlamentares ditas “de esquerda” hoje no Brasil. Como harmonizar o
conservadorismo na vida real com o progressismo na política?
Talvez Tim Maia tivesse razão quando dizia que, “no Brasil, não só as
putas gozam, os cafetões são ciumentos e os traficantes são viciados,
os pobres são de direita”. Uma ingratidão com a esquerda que lhes dá o
melhor de si e luta pelo seu bem estar. Mas tanto a maioria dos velhos
pobres como dos novos, da antiga classe média careta e da nova mais
careta ainda, e, claro, as elites, acreditam em Deus, na família e nos
valores tradicionais, e rejeitam ideias progressistas. Discutir, apenas
discutir as suas crenças, é considerado suicídio eleitoral.
Quando Abraham Lincoln, em 1862, promulgou a Homestead Law, a lei da
reforma agrária nos Estados Unidos, assegurando a cada cidadão o direito
de requerer uma propriedade de até 4 mil metros quadrados de terra do
Estado, pagando 1 dólar e 25 centavos, criou milhões de pequenos
proprietários rurais ─ que deram origem às grandes maiorias
conservadoras de hoje, que ganharam sua bolsa-terra e não querem mudar
mais nada. Uma ação politicamente progressista gerou milhões de novos
reacionários.
Um século e meio depois, no Brasil, a nossa “nova classe média”, que
tem casa, carro, crédito, viaja de avião e é eleitoralmente decisiva,
parece ser ainda mais conservadora do que a “velha”. A ascensão social
exige segurança e instituições sólidas, quer conservar o que conquistou e
reage a mudanças que ameacem suas conquistas. Como Tim Maia, querem
sossego.
Então por que não param de falar em esquerda e direita como se fosse
de futebol e tentam entender o que está acontecendo? Como disse o
ex-comunista Ferreira Gullar, “no meu tempo ser de esquerda dava cadeia,
hoje dá emprego”.