Essa semana os jonais da Bahia anunciaram a morte de Lourinho, o mais famoso e folclórico chefe da torcida do Bahia. Então me lembrei desta crônica que publiquei no jornal Cultura & Realidade de Irecê que fez muito sucesso à época. Será que os fatos aqui narrados aconteceram de fato? Tire sua conclusão.
Lauro Adolfo
Corria o ano de 1982 e o Flamengo brilhava no cenário futebolístico brasileiro. Os flamenguistas mais do que nunca orgulhavam-se em ostentar a briosa camisa de seu time. Havia um jovem repórter do combativo jornal “O Farol do Sertão” da pequena cidade baiana de Pandemônio do Oeste, que também era um torcedor fanático da equipe carioca. Seu nome era Tomas Ladino e um dia foi convocado para cobrir a peleja do Flamengo contra o Bahia no Estádio da Fonte Nova.
Tomas Ladino mal pôde acreditar em tamanho privilégio. E já no Estádio quase explodiu de felicidade por estar vendo ao vivo e em cores seus ídolos do Flamengo ali na área de treinamento em frente aos vestiários. Olhava maravilhado o bate-bola de Raul, Adílio, Júnior, Cláudio Adão, Tita, e seu ídolo maior.. .Zico. Ficou ali paralisado, tão embevecido com sua sorte que se esqueceu de pedir autógrafo aos jogadores.
O jornal em que Tomas trabalhava pertencia a um deputado que o colocou no estádio para fazer a reportagem do jogo. Ele nunca tivera acesso nos gramados e muito menos nos vestiários de algum grande estádio de futebol. Não conhecia o Bahia, e nem o Vitória posto que vivera em São Paulo desde pequeno, torcendo pelo Palmeiras e pelo Flamengo. Foi por esse desconhecimento das tradições do Bahia que ele cometeu.um ato de extrema coragem que ficou para sempre gravado nos anais históricos do Estádio da Fonte Nova.
Antes do jogo iniciar-se ele viu um galego alto, de bermuda e camisa do Bahia ajoelhar-se debaixo das traves onde Raul iria ficar. Aquele galego era o Lourinho, chefe da torcida do Bahia e conhecido por suas mandingas e feitiços contra as equipes adversárias do esquadrão baiano. De modo que Lourinho vestiu alguns bonecos com a camisa do Flamengo e amarrou fitas nos olhos e nas pernas dos mesmos. Acendeu velas e fez gestos como se estivesse rezando. Com os bonecos de olhos vendados e pernas atadas os jogadores rubro-negros não enxergariam e nem chutariam a bola com precisão. Pelo menos era o que o feitiço de Lourinho pretendia.
Tomas foi lá na trave conferir e ficou aflito com o que viu. E se o Flamengo perdesse por causa daquele “despacho”? Teve vontade de ele mesmo pegar os bonecos e rasgar aquelas fitas. A timidez momentânea porém o impediu. Armou-se de toda autoridade que pode reunir e chamou um gandula.
- Ô garoto, vai lá naquela trave e tira aqueles bonecos que estão debaixo da rede.
O gandula olhou para aquele sujeito desabusado buscando algum vestígio externo que afirmasse tanta autoridade e não vendo nada, respondeu:
- Vou não.
E Tomas com cara de enfezado:
- Caminha menino!
- Oxe, vou nada.
E saiu fazendo deboche do pobre do Tomas.
E agora? O que fazer? Tomas não teve dúvidas. Imbuído de uma coragem suicida foi lá no gol do Flamengo, pegou os bonecos e rasgou aquelas fitas todas. Agora os jogadores do seu time iriam enxergar a bola e chutá-Ia direitinho no gol adversário. Ouviu-se por toda a Fonte Nova um hóóóóóóóó de milhares de gargantas. Quem era aquele individuo que desafiava abertamente o Lourinho? Seria um grande mandingueiro do Rio de Janeiro que acompanhava a comitiva do Flamengo? Seria uma alta autoridade da CBF disposta a acabar com as palhaçadas do chefe da torcida do Bahia? Ou seria alguém que resolvera perder o juízo em hora errada? O Lourinho já no meio da torcida do seu time espumava de ódio e queria invadir o campo para dar uma lição naquele sujeito abusado, fosse quem fosse, maluco ou não. Todavia o jogo estava correndo e ninguém queria perder um lance.
Um sujeito que estava por ali na beira do campo abordou Tomas e perguntou se ele sabia o que estava fazendo.
- Sei, estou rasgando as fitas destes bonecos para não atrapalhar os jogadores do Flamengo.
- E quem é você para fazer isso?
E Tomas na maior inocência.
- Sou repórter do jornal O Farol do Sertão.
- Farol do Sertão? Que jornal é esse?
- É lá da cidade onde eu moro.
- E cadê o gravador, o caderno de apontamentos? Afinal, quem colocou você aqui dentro?
- Ora o dono do jornal que é muito bem relacionado.
O desconhecido então percebeu tudo.
- Rapaz, dê uma olhada naquele lado do campo onde está a torcida do Bahia.
E Tomas olhou e não gostou do que viu. A torcida rugia querendo o seu sangue. Lourinho estava possesso. E foi aí que ele percebeu a tremenda besteira que fez. O desconhecido assustou-o ainda mais:
- Rapaz se o Bahia perder ou empatar você não sai vivo daqui, nem a polícia vai te salvar.
- É mesmo? O que é que eu faço então pelo amor de Deus?
- Se pique, suma, desapareça e agora mesmo.
E o locutor da Rádio Sociedade da Bahia anunciou:
- O suicida agora está passando em frente a torcida do Bahia que joga nele, sapatos, sandálias, latas de refrigerante e cerveja e todo objeto que estiver à mão. O Lourinho quer esfolá-Io vivo e a muito custo está sendo seguro pela torcida. Que besteira o suicida irá fazer agora?
Tomas procurou o dono do jornal e não encontrou. E também o chefe de redação do jornal já tinha sumido àquela altura do campeonato. De modo que ele estava sozinho e mal pago. Todo mundo já estava ciente do seu problema. Tomas não era tão bestinha assim como a princípio se pode pensar. Toda vez que se via em apuros, ele adotava a postura de um tabaréu só para que ficassem com pena dele, em vez de se enraivecerem, as pessoas procuravam ajudá-lo.
-Ô moço, como é que eu saio daqui? Perguntou com voz chorosa a um rapaz vestido com roupas esportivas.
- Para você sair daqui vivo tem de ser por aquele túnel que passa por baixo das cadeiras numeradas. Seguindo direto você sai para fora do estádio. Não deixe nem nome nem endereço a ninguém.
Aqueles poucos metros dentro do túnel que dariam a liberdade a Tomas nunca foram tão longos e assim que chegou ao hotel onde estava hospedado, trancou-se no quarto depois de dizer ao gerente do hotel que não estava para ninguém. Só para seu companheiro de quarto que era o chefe de redação do Farol do Sertão. E Tomas pela primeira e única vez na vida torceu, e como torceu contra seu time. E gemia desesperado:
- Faz um gol Bahia, ganha essa partida pelo amor de Deus!
Mas o Bahia não ganhou. O jogo terminou empatado sem abertura de contagem. Dali a pouco chega o chefe de redação do Farol do Sertão apavorado.
- Rapaz, o Lourinho te procurou por todo canto lá no Estádio querendo o seu couro. E não sei se ele não vai procurar por tudo quanto é hotel aqui em Salvador. Se ele te acha não quero nem pensar!
- Se ele te acha uma zorra! Se ele nos acha!
O chefe de redação que sempre andava armado, por via das dúvidas, engatilhou o revólver e ficou com ele na mão a noite inteira. Se alguém batesse na porta do quarto levava tiro. Afinal, ele estava tão encalacrado quanto o seu desastrado repórter.
O deputado que era torcedor do Bahia, logo depois demitiu Tomas, o chefe de redação e fechou o jornal. Felizmente para ele, ninguém descobriu para qual jornal aquele maluco repórter que miraculosamente conseguira sair vivo da Fonte Nova, trabalhava. E se descobrissem, o fechamento do Farol do Sertão seria sua salvaguarda.
Quanto a Tomas Ladino, Fonte Nova dali por diante, só na geral, bem quietinho, bem escondidinho e o mais longe possível daquela doido do Lourinho.