segunda-feira, 26 de setembro de 2011

‘Nada a ver’

J. R. Guzzo

Houve um tempo em que existiam coisas certas e coisas erradas. As coisas certas eram o contrário das coisas erradas, as coisas erra­das o contrário das coisas certas, e ninguém precisava recorrer à Corte Internacional de Haia ou consultar comissões de ética para saber a dife­rença entre umas e outras. Na vida pública brasi­leira, ao longo dos últimos anos, surgiu uma ter­ceira categoria: as coisas que não têm nada a ver. À primeira vista elas parecem tão erradas quanto o pecado original, mas, depois que recebem o ca­rimbo de “nada a ver”, passam a desfrutar de ab­solvição automática e integral. Transformam-se imediatamente em atos corretos, ou pelo menos neutros; o que não se admite, em nenhuma hipó­tese, é que possam estar errados. Esse tipo de pirueta faz um sucesso cada vez maior no mundo oficial, sempre que alguém tem de explicar uma situação enjoada. O resultado é que o Brasil, hoje em dia, é o país do nada a ver.

Funciona assim, por exemplo: um peixe graú­do da administração pública, desses que estão em um dos 25000 empregos para os quais as supre­mas autoridades da República podem nomear quem bem entenderem, tem um parente próximo (mulher, irmão, filho etc.) que é dono de alguma empresa; essa empresa, por sua vez, ganha do go­verno contratos para lhe vender produtos, prestar serviços ou construir obras, às vezes diretamente na área dirigida pelo alto burocrata em questão. Na época das coisas certas e erradas, algo assim era considerado quase uma piada, em matéria de erro; só os espíritos mais audaciosos, ou desespe­rados, tentavam algo parecido. Não mais. Hoje, quando se dá um flagrante desses, a posição oficial do governo é dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sim, o dr. Fulano ocupa a posição tal; sim, a empresa dos seus familiares recebe di­nheiro do governo, para fornecer isso ou aquilo – e daí? Sua mulher, irmão, filho etc. têm todo o direito de assinar contratos com a administração. Trata-se de empresários como quaisquer outros. Participam de licitações públicas. Proibi-los de fazer negócios com o governo seria discriminação. O fato de ganharem o contrato não tem nada a ver com o fato de que há um marido, irmão, pai etc. no governo. Caso encerrado.

Ninguém mais está disposto a perder muito tempo, atualmente, montando esquemas compli­cados para esconder seus “malfeitos”, como diria a presidente Dilma Rousseff. Basta prestar um pouco de atenção às “organizações não governa­mentais” que os políticos utilizam para tocar seus negócios. Nada mais simples. Um parlamentar faz aprovar pelos colegas uma emenda mandando es­se ou aquele órgão do governo entregar alguns milhões de reais a uma ONG, que em troca do dinheiro recebido se encarregaria de prestar servi­ços ao poder público; uma das fórmulas preferi­das, no momento, é dar “treinamento”. Treina­mento para quê, ou para quem? Tanto faz: qual­quer invenção serve, pois ninguém vai treinar ninguém para nada. A única providência que real­mente interessa é entregar a verba à ONG escolhi­da. Ela vai repassá-la a uma empresa-laranja, à qual caberia fazer o treinamento previsto na emen­da; nenhuma tarefa é executada e o dinheiro some no espaço, sem deixar vestígio. Quando o fato é descoberto, o parlamentar responsá­vel pela trapaça diz que uma coisa – a sua emenda – não tem nada a ver com a outra – o sumiço da verba. Tudo o que ele fez foi providenciar os recursos. Não lhe cabe fiscalizar sua aplicação – se no meio do caminho meteram a mão no dinheiro, o que ele tem a ver com isso?

A filosofia do nada a ver tem mil e uma utilida­des. Serve para permitir, por exemplo, que um gran­de escritório de advocacia pague diárias num hotel de luxo na ilha de Capri – isso mesmo, Capri – a um ministro do Supremo Tribunal Federal. O STF não poderia julgar causas patrocinadas pelo tal es­critório? Poderia, é claro. Mas as duas coisas não têm nada a ver entre si; segundo o ministro em questão, trata-se de um “assunto pessoal”. O nada a ver também serve para que grandes eminências da política nacional viajem em jatinhos de emprei­teiras, banqueiros e outros magnatas – ou que recebam deles até 500 000 reais para lhes fazer uma palestra. Que problema poderia haver nisso?

A consciência do homem público brasileiro, hoje em dia, é algo que se satisfaz com pouco. É como o camelo: basta lhe dar aquele tanto de água e o bicho atravessa um deserto inteiro, sem recla­mar de nada. No Brasil de 2011 é preciso cada vez menos para explicar que o erro não está errado. É só dizer: “Nada a ver”.