Eu
cá das minhas férias muito peculiares, trabalhando um tantinho, lembro
aos leitores que o fim do foro por prerrogativa de função — que chamam
por aí de “foro privilegiado” — tem tudo para ser um notável tiro no pé
que o moralismo dá na moralidade. É nisso que dá se dedicar mais ao
grito do que ao pensamento. Talvez seja preciso escrever menos
cartolinas e prestar um pouco mais de atenção à história.
Parte dos
processos do mensalão foi para a primeira instância da Justiça. Deu em
quê? Sem contar que é evidente que se aumenta enormemente a chance de
recursos. Não por acaso, hoje em dia, os próprios políticos são os mais
interessados nessa mudança.
Cadê a
memória, gente boa? A primeira chicana do julgamento do mensalão foi
justamente o pedido encabeçado por Márcio Thomaz Bastos para que os não
políticos e os políticos sem mandato — como José Dirceu, por exemplo —
fossem julgados na primeira instância. Vocês já se esqueceram daquele
voto “de improviso” de Ricardo Lewandowski que tinha 70 páginas???
Os
mensaleiros só estão hoje mais perto da efetiva punição — vamos ver que
destino se dará aos embargos — porque o processo foi julgado no Supremo.
Dadas todas as instâncias para recursos, o melhor caminho para a
impunidade é mesmo a mudança da Constituição nesse particular. É uma
tolice considerar que, assim, se estaria fazendo mais justiça. A chance
enorme é que se faça menos.
De resto,
como desconsiderar o risco da proximidade de lideranças políticas
regionais com tribunais locais? Respondam depressa: vocês acham que, em
regra, um prefeito e um governador preferem ser julgados na primeira
instância ou no STJ? Vocês acham que Dirceu, João Paulo Cunha e José
Genoino, se tivessem podido escolher, teriam optado pelo Supremo?
Com a
devida vênia aos que acham que assim se estabelece a igualdade, sou
obrigado a deixar registrado aqui que considero isso uma bobagem. Como
tolo foi o voto da CCJ do Senado em favor do fim de qualquer voto
secreto. É tudo o que pretende o Executivo. Se essa tontice avançar,
nunca mais se derrubará um veto presidencial ou se votará contra uma
indicação oficial para qualquer cargo.
Nessa leva
de bobagens, a Câmara aprovou também por esmagadora maioria a chamada
“independência” da Defensoria Pública na esfera federal. Daqui a pouco,
cada órgão do estado terá a ambição de ser um Poder da República. Até
parece que a autonomia administrativa — e orçamentária — tornará mais
livre um defensor. Expliquem-me como. O deputado Mendonça Filho (DEM-PE)
foi dos poucos — apenas 3 — que tiveram a coragem de votar contra;
houve nada menos de 408 votos a favor e uma abstenção. E ainda foi
hostilizado por isso. Sei que lá vem pauleira, mas não seria eu se não o
dissesse: essas autonomias só servem para criar caixas-pretas e
alimentar, ao longo do tempo, privilégios. Ocorre que agora se está
fazendo tudo na base do frenesi. “É a voz das ruas”, dizem, “é a voz das
ruas.”
Pois é… Se
eu acho que as ruas querem coisas que não são boas, só me resta dizer. O
fim do foro por prerrogativa de função — que não é privilegiado coisa
nenhuma! — vai tornar a punição de corruptos ainda mais distante. E,
sim, é preciso dizer: também acaba abrindo janelas para outras práticas
nefastas, como a perseguição política e, lamento!, a venda de sentenças.
“Por que, Reinaldo, juízes de primeira instância são mais corruptos?”
Não! Ocorre que eles são muitos. E também deve haver os que não prestam,
não é mesmo?, a exemplo do que ocorre entre jornalistas, caminhoneiros,
padres, pastores, deuses da Grécia antiga…
Um dia um
jornalista investigativo — não é o meu caso; só investigo advérbios —
vai se debruçar sobre o comércio paralelo que se criou no país depois da
Lei da Ficha Limpa. Subiu enormemente o preço das absolvições…
É preciso
tomar cuidado para não dar uma de Savonarola dos trópicos. O fim do que
chamam “foro privilegiado” é hoje um privilégio há muito esperado por
alguns espertos. Basta somar dois mais dois e se vai chegar
imediatamente a quatro. A voz rouca das ruas não deveria ser surda à
razão.